Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
No episódio desta semana, Sara conversa com o arquiteto Luís Rebelo de Andrade sobre as várias construções e reabilitações que projetou em Pedras Salgadas, município ao norte de Portugal. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Andrade, a seguir.
Reveja, também, as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:
- Carrilho da Graça
- João Mendes Ribeiro
- Inês Lobo
- Carlos Castanheira
- Tiago Saraiva
- Nuno Valentim
- Nuno Brandão Costa
- Cristina Veríssimo e Diogo Burnay
- Ricardo Bak Gordon
- Paula Santos
- Carvalho Araújo
- Guilherme Machado Vaz
- Menos é Mais Arquitectos
- depA architects
- ARX Portugal
- Frederico Valsassina
- PROMONTORIO
- Camilo Rebelo
- Pedro Domingos e Pedro Matos Gameiro
Sara Nunes - Bem-vindo, arquitecto Luís.
Luís Rebelo de Andrade - Olá! Viva! Como é que está, Sara? Bem-disposta?
SN - Estou óptima. Muito bem-disposta. E fico muito contente porque já percebi que o Luís tem um bom sentido de humor, por isso parece-me que vamos ter uma boa conversa!
LRA - (risos) Vamos tentar! Ver se eu não digo muitos disparates! Vamos lá ver!
SN - (risos) O Luís tem dedicado muito da sua prática profissional a projectos ligados ao turismo, sendo que o turismo tem transformado muito as nossas cidades, em particular o Porto e Lisboa, onde está situado o vosso atelier. E se por um lado o crescente turismo, nos últimos anos, tem permitido reabilitar os centros das cidades e tem dado muito trabalho a muita gente, por outro lado tem feito disparar o preço das rendas e das casas para comprar, inibindo muitas vezes que os portugueses possam habitar as próprias cidades. Como é que se resolve este dilema, segundo a sua experiência com o turismo?
LRA - Obviamente o turismo é uma actividade que tem trazido muita exportação para Portugal e tem sido capaz de imputar muito dinheiro para o país. É algo que nós não podemos descurar. Aliás, Portugal é um país extraordinário que não sofreu uma Segunda Guerra Mundial. Temos um património – se bem com uma escala diferente de todos os países da Europa – riquíssimo, que tem de ser organizado e valorizado. Acontece que nem sempre isso sucede. Temos destruído muita paisagem, fruto de muitos factores, nomeadamente na falta de planeamento que é terrível. O país precisa de muito mais planeamento do que tem existido. As decisões, muitas vezes, são completamente desenquadradas de um todo. As decisões, muitas vezes, vão no sentido de favorecer um amigo. E muitas vezes também, como resultado disso, têm aparecido projectos de vaidade, que quanto a mim são um enorme erro. Lisboa poderia... obviamente que isto tem de partir do município e nós não entendemos porque é que os municípios não fazem mais por isso. Ou seja, os municípios como Lisboa têm um património vastíssimo construído degradado e devoluto.
Porque é que não se reabilita isso para criar rendas acessíveis? Porque é que não se criam numerus clausus para o aparecimento do turismo de uma forma organizada? Tudo isto está completamente desorganizado e quando estes aspectos não estão organizados, quando o planeamento não é bem feito, obviamente, aparecem brechas nas cidades e fenómenos que, muitas vezes, destroem as cidades. Nós temos escritório aqui na Baixa Pombalina e agora por falta de planeamento só existem lojas de pastéis de nata, de sardinhas, de pastéis de bacalhau com queijo da serra, etc. E temos visto as lojas históricas da Baixa Pombalina a desaparecer e, qualquer dia, mesmo com o esforço que se está a fazer na reabilitação da Baixa Pombalina, ao abrigo do Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, nós verificamos que nem os próprios arquitectos muitas vezes conseguem perceber (e que deviam ter esse conhecimento) a falta de cuidado no tratamento daquilo que é o Cartulário Pombalino – uma das responsabilidades que o Plano de Salvaguarda da Baixa Pombalina obriga. Só que por falta de conhecimento desse Cartulário Pombalino e das regras da Baixa Pombalina, nós assistimos às maiores barbáries feitas aqui na baixa por arquitectos que se dizem grandes experts da reabilitação. Enfim... não sei o que dizer. Por onde é que vem o mal? O mal vem de muitos lados e já está tão enraizado que seria necessário cortar o mal pela raiz, mas ninguém tem coragem para o fazer. Portanto, vamos andando com paliativos na esperança de que um dia haja um milagre qualquer e que estas coisas se resolvam porque todas estas decisões acabam por ser, na maior parte das vezes, políticas e não centradas naquilo que deveria ser uma legislação para o bem comum, a pensar no bem das cidades e para o bem do país. Não vemos isso. Eu tenho esperanças agora com esta nova Câmara de Lisboa que haja uma mudança de paradigma e que, de facto, as decisões sejam tomadas no sentido de beneficiar o cidadão e não de beneficiar as clientelas políticas. Tenho dito. Não me vou expandir mais aqui porque é muito arriscado.
SN - Sim, até porque hoje vamos falar de um bom exemplo. Há pouco o Luís falava de que tem havido muita destruição na paisagem, na identidade, mas o projecto que vamos falar hoje é, exactamente, o contrário. Houve um respeito enorme quer pela paisagem, quer pela identidade. O Parque das Pedras Salgadas era um complexo termal, que abriu portas em 1879, e foi utilizado para tratamentos de saúde com a água. Com os avanços da medicina ficou muitos anos abandonado. Depois de ter estado muitos anos abandonado, decide-se reabilitar o parque, as termas e criar um novo complexo hoteleiro. Fale-nos um pouco desta história, deste lugar fascinante e o que motivou o projecto de revitalização do complexo.
LRA - Houve ali várias questões, por acaso, muito interessantes. No Parque de Pedras Salgadas, a Unicer muito pressionada pelo povo de Vila Pouca de Aguiar, de Pedras Salgadas, foi obrigada de certa forma a fazer a reabilitação do Parque de Pedras Salgadas. O Parque de Pedras Salgadas é propriedade privada, neste caso da Unicer, mas de utilização pública. E antes da Unicer – a Unicer não é a culpada propriamente dita desse tema – ser proprietária de Vidago e Pedras Salgadas, ela era proprietária do Grupo Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas. O anterior proprietário submeteu um PIN (Projectos de Potencial Interesse Nacional) para a reabilitação de Vidago e de Pedras Salgadas. No entanto, todas as verbas que estavam disponíveis nesse PIN foram gastas no projecto de Vidago e Pedras Salgadas ficou esquecido. Isto criou uma revolta muito grande na população de Pedras Salgadas e de Vila Pouca de Aguiar que, de certa forma, obrigaram a Unicer a respeitar os compromissos que tinha assumido com esse PIN.
SN - Acho engraçado ter sido a própria população que reclamou este projecto.
LRA - Exactamente Sara! Aí eu cheguei à conclusão de uma coisa que eu acho muito interessante e que muitas vezes está esquecida na nossa actividade. Eu costumo dizer que nós arquitectos temos um problema grande. Nós não temos como o médico, nem como o advogado um só cliente. Nós temos vários clientes num projecto. Para além do promotor, temos a Câmara e temos um terceiro que fica muitas vezes esquecido, que é a população em geral. Ou seja, o que eu quero dizer com isto é que foi ali que eu me apercebi que, no fundo, nós somos donos de um activo de uma propriedade, mas não somos donos nem do subsolo (isso está legislado), nem somos donos da paisagem. É uma soberba de quem não tem essa noção porque eu não posso desenhar num lugar aquilo que me apetece. Nós arquitectos temos...
SN - Uma responsabilidade.
LRA - Uma responsabilidade muito grande. Eu também costumo dizer que nós somos os guardiões da paisagem. Ou seja, o curso que nos deram e a responsabilidade que temos em projectos a desenhar e a redesenhar as cidades e a reabilitar o nosso património eu entendo como uma responsabilidade que me é posta em cima e que tento levar isso muito a sério, nomeadamente em Pedras Salgadas, onde havia uma desconfiança enorme na intervenção que a Unicer lá queria fazer. Nós fomos, de certa forma, injuriados e, a páginas tantas, houve também alguma mentira nas acusações que nos faziam. Durante o processo, nós fomos, de certa forma, eu não diria achincalhados, mas perto disso relativamente ao nosso trabalho.
As pessoas estavam, de facto, muito incomodadas pela forma como a Unicer geria um património que eles sentiam como se fosse deles. Nós preocupamo-nos essencialmente nesse projecto... Ou seja, todas as intervenções contemporâneas que nós fizemos trabalhámos seguindo determinadas linhas orientadoras. Primeiro, sabíamos que tínhamos de respeitar a identidade dos sítios – e nós temos que ter consciência de como é que as identidades foram criadas – e um dos elementos que é a grande responsável pela identidade do lugar é a utilização de materiais autóctones. Na altura não havia gruas, nem camiões. O transporte de materiais era muito difícil e, portanto, construía-se com os materiais que se tinha.
SN - Do lugar, não é?
LRA - Do lugar. E isso é o que torna o Porto uma cidade fascinante.
SN - Granítica.
LRA - Granítica, com as ruas pequenas. Como torna Lisboa uma cidade fascinante.
SN - Com o seu calcário e basalto, o Alentejo com o adobe, o interior de Portugal com o xisto. Ou se formos para os Açores temos a pedra vulcânica e, realmente, vamos encontrar em cada um destes lugares, apesar de sermos o mesmo Portugal, identidades completamente diferentes. O Parque de Pedras Salgadas tinha uma identidade muito própria, de uma construção típica de um determinado período. No período românico, com as termas, havia a moda de as pessoas irem a banhos consoante as maleitas que cada um tinha. Se eram maleitas respiratórias, iam para umas termas. Se houvesse água com enxofre, dirigiam-se para lá as pessoas com problemas de pele. Se tivessem outros problemas, iam para outras águas diferentes. Nós somos ricos em águas termais. Mas depois veio a Segunda Guerra Mundial, veio um avanço tecnológico muito grande e a Medicina, como a Sara falou, evoluiu bastante. Portanto, as pessoas deixaram de ir para as termas e nós apanhámos umas termas abandonadas com edifícios devolutos.
SN - Já agora estavam abandonadas há quantos anos, Luís? Só para termos uma ideia.
LRA - Havia um único edifício que foi o edifício que se manteve mais tempo. Foi o Hotel Avelames que se manteve, acho eu, operacional até os anos 1990, princípios de anos 90.
SN - Ok.
LRA - Depois houve a reabilitação do Balneário Termal, feita pelo Siza. E houve uma reabilitação também no Parque de Pedras Salgadas que era da Casa do Chá. A Unicer foi fazendo, gradualmente, algumas intervenções. Com o Siza repôs o antigo lago, onde havia uma piscina quase olímpica que foi destruidora da identidade do lugar. O Siza, muito bem, acabou com essa piscina olímpica, repôs o lago e fez um projecto para uma nova piscina dentro do parque. Um edifício contemporâneo que eu penso que não é dos projectos mais felizes do arquitecto Siza Vieira, quem eu admiro muito. Nós preocupámo-nos em intervir nas Casas nas Árvores e nos bungalows. Trabalhámos com materiais autóctones e com materiais que se tornam, de certa forma, invisíveis na paisagem.
SN - Estamos a falar de que materiais, para quem não está a ver o projecto?
LRA - Estamos a falar do granito de Pedras Salgadas. Estamos a falar da lousa preta e da madeira. São materiais que são da região ou que se podem considerar autóctones. Estes materiais construíram os bungalows com aquela imagem negra, que desaparecem na paisagem. Aliás esses materiais serviriam tanto isso, como as Casas nas Árvores. Nós não quisemos dar protagonismo. Infelizmente não foi o que aconteceu, mas aquilo que em projecto fizemos foi não querer dar protagonismo a essas construções. Onde nós queríamos dar protagonismo e puxar pelo brilho das construções foi no casino, na igreja e na recepção. Quanto ao edifício do Hotel Avelames – que é um edifício fantástico também dessa época termal, dessa arquitectura termal com uma identidade muito forte, no tempo do Sousa Cintra – houve uma intervenção que o fez crescer e destruiu-lhe a identidade toda, tornando-o num edifício contemporâneo, mas de arquitectura muito desequilibrada e com escala muito desequilibrada também. Foi pedida a nossa opinião porque a Unicer achava que se devia demolir aquele edifício. Nós tínhamos uma opinião ligeiramente diferente e propusemos demolir quatro dos pisos desse edifício, que é um edifício com cinco pisos. Ou seja, com o rés-do-chão mais quatro pisos. Nós decidimos demolir os quatro pisos acima do piso de entrada com esses materiais que foram separados e reciclados. O ferro foi para um lado, o betão e o tijolo foram triturados para fazer brita. Enfim, houve ali um trabalho de...
SN - Preocupação de sustentabilidade, não é?
LRA - Uma sustentabilidade muito grande. E então transformámos o Hotel Avelames no Monte Avelames. Ou seja, nós aproveitámos o piso 0, que ficou debaixo de terra, para colocar lá os serviços do parque. Isto é, o backoffice, o housekeeping, a parte toda de escritórios, recepções, salas de estar.
Enfim, as zonas onde o parque dos carrinhos de golf, que fazem o serviço de transporte dentro do parque. Porque nós somos da opinião e conseguimos que o cliente não entrasse com o carro dentro do parque.
SN - Ah, ok!
LRA - Os clientes não podem entrar dentro do parque com os seus próprios carros. Eles entram, têm um estacionamento por detrás da recepção e são levados pelos serviços, em carrinhos de golf, às casas, de forma a que não haja poluição sonora e visual dentro do parque. Portanto foi o que aconteceu e hoje está a funcionar dessa forma.
SN - E acentua também esta proximidade com a natureza, não é? Imagino que quem procura este turismo, procura também isso.
LRA - Exactamente, o turismo. A Unicer vivia muito preocupada porque considerava que aquele projecto devia ser vocacionado para turismo de Natureza e turismo de Família e insistiam muito comigo acerca disso. Eu, a certa altura, numa reunião, perguntei, na administração da Unicer, quem é que não tinha a ambição, em pequenino, de ter uma casa nas árvores.
SN - (risos)
LRA - Todos levantaram a mão, à excepção de uma senhora da administração. Depois eu perguntei-lhe o porquê e ela, naturalmente, disse que a ambição dela não era ter uma casa nas árvores, mas sim uma casa de bonecas. O que faz algum sentido!
SN - Certo! (risos)
LRA - Foi a partir daí que a Unicer tomou consciência dessa falha no programa e então decidiu avançar com duas casas nas árvores. Nós, nessa altura, o que fizemos foi convencer a Unicer a ir ver alguns projectos na Europa de casas nas árvores para retirar essa imagem da casa de Robinson Crusoe e por aí fora. Até porque o tipo de árvores que nós temos, que são oleaginosas no Parque de Pedras Salgadas, são árvores que não têm ramos, não têm braços. Agarrar uma casa a essas árvores é muito complicado.
SN - Estou a perceber.
LRA - Depois também existia a minha preocupação – se calhar porque sempre vivi com um irmão mais velho que, desde os nove anos, tem paralisia infantil – com esse tema da mobilidade. Por isso sempre pensei que as escadas para se subir com a casa nas árvores seria algo complicado para quem não tinha mobilidade para o fazer.
Ou que, de certa forma, em termos de cidadania, há uma injustiça que nós estávamos a criar, daí que aquelas casas têm a ponte de acesso, não é?
SN - Ah! Faz sentido essa ponte, sem dúvida!
LRA - Foi criada essa ponte de acesso para permitir que quem tenha determinados handicaps, ou as pessoas com menor mobilidade possam usufruir dessas casas e sentir-se, verdadeiramente, no topo de uma árvore que é a sensação que se cria lá dentro. As casas estão a 7 metros de altura, mas as casas estão viradas para uma descida do território, por isso quando se está lá em cima há, de facto, uma sensação de estarmos quase...
SN - Nas copas das árvores.
LRA - Nas copas das árvores, a 20 metros de altura. É a imagem que aquilo cria! Acho que aí foi completamente conseguido em que há por um lado a identidade do parque que nós nos preocupamos em manter na reabilitação do edifício do casino, que é talvez o mais emblemático, e na reabilitação da igreja que, apesar de parecer uma igreja antiga, é uma igreja dos anos 40 feita toda em pedra, com uma linguagem muito conservadora, muito clássica. E depois há todas as outras intervenções que fizemos, ao nível da primeira casa de engarrafamento e da recepção em que procurámos manter aquela linguagem arquitectónica típica daqueles tempos, exactamente, para que não se perdesse essa história e essa identidade. E é engraçada esta questão de nós enquanto guardiões da paisagem porque ao princípio estava a falar da forma como nós fomos tratados pela população de Pedras Salgadas. Quando inaugurámos as primeiras casas...
SN - As primeiras casas foram as Eco Houses, não é?
LRA - As Eco Houses exactamente. Nós fomos acusados pela população, por aqueles opinion makers da região que diziam que nós estávamos a fazer umas gaiolas para pássaros.
SN - Porquê gaiolas para pássaros?
LRA - Porque são coisas pequenas. As Eco Houses são construções pequenas. Nós estávamos completamente seguros daquela solução na medida em que hoje – e tem-se vindo a provar isso – a hotelaria e o turismo são experiências.
Aliás, é experiência, experiência, experiência, conforto, experiência, experiência, conforto e imagem. Imagem porque é o ponto de arranque da escolha de qualquer pessoa que vai à Internet ou ao Booking. Quem aí se dirige, faz a primeira triagem e escolhe algum sítio pela imagem.
SN - Que gera a curiosidade, é isso?
LRA - Que gera a curiosidade, Sara. E é engraçado que hoje, quando vou a Pedras Salgadas, acontece-me, recorrentemente, haver pessoas que vêm ter comigo porque depois nós fomos acusados disso, mas colocámos aquilo nas redes sociais e foi completamente viral. A certa altura, verificámos que os emigrantes da região, vinham com mais pressa de regressar a casa. Não para ver os seus próximos, mas para ver as Eco Houses porque já tinham visto as Eco Houses numa revista lá fora. Já tinham visto isso anunciado e, por isso, havia essa pressa. Hoje acontece que há algumas pessoas que vêm ter comigo, que me vêm agradecer e vêm pedir autógrafos e, para além disso, dizem-me: “Oh arquitecto! Vai ficar até que horas?”. E eu respondo: “Fico cá até às seis”. E eles: “Então não se vá embora porque eu tenho ali uma coisa para si”. Trazem-me presentes!
SN - Que engraçado! No sentido da gratidão da população relativamente a este projecto?
LRA - Exactamente. Porque, no fundo, Sara, muitas daquelas pessoas— com o sucesso que Pedras Salgadas teve — recuperaram os seus empregos.
SN - Ah!
LRA - Hoje há muita mais actividade económica na região.
SN - Claro!
LRA - Não é?
SN - Na realidade quando estamos a fazer arquitectura não estamos só a fazer arquitectura em termos de impacto, não é?
LRA - Como é óbvio. Nós estamos a mexer num território que não é o nosso e as pessoas vão ter de viver com ele! Penso que é muito importante nós trazermos qualidade para os espaços urbanos e para a arquitectura. As pessoas têm de se identificar com eles. É muito constrangedor, por exemplo, aquilo que nós vemos passar ao nível da habitação social.
Ainda agora entramos num concurso para habitação social e é constrangedor quando se percebe que os próprios elementos do júri elogiam um projecto porque ele tinha mesmo a imagem da habitação social. Ora, para mim, a habitação social não é isso. A habitação social compreende que todos têm de ter habitação e a habitação tem de ter custos possíveis para todas as faixas da população, que auferem níveis diferentes de ordenados. Elas têm o direito também de não serem catalogadas – que é o que estas pessoas fazem ao expressarem estas observações – como habitação social.
SN - Esse é exactamente o problema: é elas serem catalogadas como habitação social.
LRA - Exactamente, mas repare, Sara, quando nós vemos um elemento do júri a atribuir o prémio da vitória a um projecto porque ele tem a imagem de habitação social... Eu acho que está tudo dito, não está? Infelizmente é disto que nós neste país temos. Infelizmente, salvo raras excepções, o que nós vemos e quem nós vemos, progredir é a mediocridade. A mediocridade progride muito bem. Depois há algumas excepções que, habitualmente, confirmam esta regra. Quem tem sucesso neste país é a mediocridade por causa destas coisas. Como é que é possível alguém que está num júri a avaliar um projecto ter a distinta lata de dizer que o projecto é muito bom porque tem, exactamente, a imagem da habitação social?
SN - Ainda há muito trabalho para fazer, não é Luís?
LRA - Exactamente. Há muito trabalho para fazer e há, sobretudo, esta consciência de que a arquitectura e a sociedade têm de ter sobre a profissão do arquitecto. Ser arquitecto é algo que é muito complexo, muito complicado, implica muitas horas de investigação e de ensaios até chegar à resposta certa para um determinado lugar.
SN - Agora que está a falar do processo, interrompia-o para colocar uma pergunta. Sabemos que alguns destes projectos são de reabilitação, outros são projectos de raiz, como é o caso das Eco Houses e das Snake Houses. Qual foi o processo construtivo destas novas casas? Sei que houve aqui uma preocupação muito grande. Aliás, nota-se ao longo desta conversa – e depois se puderem ver também se verifica isso nas imagens do projecto – um grande respeito quer pelo património, quer pela natureza e pela paisagem. Sei que houve uma preocupação de não roubar árvores em nenhuma destas intervenções. Conte-nos, um pouco, o desafio de, por um lado, construir e, por outro lado, respeitar ao máximo o lugar.
LRA - Nós tínhamos uma mata. Ou seja, um parque que era algo completamente orgânico. Não se trata de um loteamento em que nós temos lotes perfeitamente definidos, com afastamentos obrigatórios da construção, e por aí fora. Não é nada disso. Nós vamos ter que implantar casas num lugar que não tem espaços definidos para colocar essas casas, em primeiro lugar. O processo, no atelier, começa, inicialmente, por uma análise muito grande e com uma preocupação de tecnicamente responder às solicitações do projecto. Depois vem a parte funcional que nós também temos de dar resposta. Só, no fim, vem o envelope que vai tornar isto mais bonito ou menos bonito, consoante os gostos de quem projecta, ou da sensibilidade de quem projecta. Nós ali, tecnicamente, tínhamos esse problema. Ou seja, não temos lotes, não temos território. Eu não vou andar e nós não vamos andar a cortar árvores, que são centenárias, para colocar as nossas casas. Esse era o ponto de partida que tínhamos de resolver. Para além disso, tínhamos outros temas que eram complexos porque o subsolo do Parque de Pedras Salgadas é rochoso, tem falhas e é nessas falhas que nasce a água de Pedras Salgadas. Essa água é, curiosamente, das raríssimas águas gasosas que a natureza nos dá! A maior parte das águas gasosas são provocadas e criadas pelo Homem. Portanto, nós ali tínhamos um problema. Não podíamos usar explosivos para fazer aberturas para caboucos para sapatas. Não o podíamos fazer porque as oleaginosas e todas as raízes dessas árvores eram muito superficiais. Eram árvores que, se nós tapássemos o arranque da árvore em 20 cm de terra, asfixiariam e morreriam. Portanto, tínhamos de ter um grande cuidado a mexer.
SN - Quase cirúrgico!
LRA - Completamente cirúrgico! Então a ideia parte de duas coisas fundamentais. Em primeiro, as fundações das casas são feitas por micro estacas. Micro estacas essas reduzidas no seu número, onde assentariam uns tabuleiros metálicos e onde assentariam as casas. Depois, como tínhamos um terreno muito orgânico, decidimos criar peças de lego. Ou seja, três módulos distintos. Um módulo fazia a sala e a cozinha, outro módulo fazia a casa-de-banho e o hall de entrada e um terceiro módulo fazia um quarto e outros espaços de dormida para quando as famílias vêem com as crianças. Os três módulos sempre cada um deles igual a si. O módulo da sala sempre igual, o módulo da casa-de-banho e do hall de entrada sempre igual e o módulo dos quartos sempre igual, que depois eram assemblados (reunidos) de formas diferentes. Ou seja, isto permitia-nos várias coisas.
Permitia-nos, por um lado, assemblar (unir) estes elementos à volta das árvores sem ter de tocar nelas; dava-nos o conforto de termos uma arquitectura que acabava por ser sempre diferente por ter volumetrias diferentes; e dava-nos espacialidades e interiores também diferentes. Isto criava...
SN - Permitia várias combinações, não era?
LRA - Permitia várias combinações e parece que não há uma casa igual, mas todas elas são iguais porque todas elas partem do mesmo lego, da mesma peça de lego. Só no fim é que pensamos como é que poderíamos tornar isto fantástico. Chegados a esse momento, decidimos trabalhar com os materiais autóctones. Isso é uma prática recorrente aqui no atelier, salvo raríssimas excepções. Talvez a Casa 3000, em Alcácer do Sal, é a única excepção a esta regra, mas tem outras razões que validam aquela solução. Mas, tirando essa vez, fomos sempre à procura dos materiais autóctones. A ardósia existe praticamente em todo o lado. O granito de Pedras Salgadas e a madeira, no fundo, são materiais nobres da construção e, portanto, dávamos a resposta áquilo que nós pretendíamos. Ou seja, no meio da mata, que é sempre algo que é escuro, colocarmos construções escuras. Estamos, de alguma forma, com alguma humildade, a tentar esconder essas casas para que os edifícios que fazem a identidade do parque possam ser as ‘rainhas do parque’ e não as casas. Hoje tenho consciência que as nossas Eco Houses e Casas nas Árvores também são as rainhas desse parque, mas aí, lá está, há aqui uma combinação entre aquilo que nós herdámos (e que é muito bom) e o que lá adicionámos, que não se confronta e não entra em discussão para tentar ver quem é o melhor no meio disto tudo. O que foi adicionado está integrado e cria valor acrescentado ao parque. Eu acho que, nesse aspecto, o trabalho foi feliz e conseguimos, de facto, um resultado feliz naquelas casas.
SN - Sobressaíram pela sua invisibilidade, é isso?
LRA - Exactamente. Foi muito interessante o projecto. O trabalho foi interessante, precisamente, por isso mesmo.
SN - Quantas vezes é que terá ido ao Parque de Pedras Salgadas? Só para termos uma ideia também de quanto tempo é que estes projectos demoraram.
LRA - Estes projectos demoraram três anos.
SN - Ah! Foi rápido!
LRA - Eu ia todas as semanas ao parque. Tínhamos reuniões todas as semanas de trabalho, onde víamos e revíamos sempre tudo com todos os cuidados. Há sempre dúvidas, há sempre questões que são levantadas quer pelos empreiteiros, quer pelo próprio dono de obra, quer pela fiscalização. Há sempre tema. Havia sempre tema, até porque estávamos a fazer variadíssimas obras. Nós não estávamos só a fazer as Eco Houses e as Casas nas Árvores. Nós estávamos a fazer as Eco Houses, as Casas nas Árvores, estávamos a reabilitar o antigo edifício do casino, estávamos a reabilitar a antiga igreja, estávamos a reabilitar a questão do Hotel Avelames que, como disse, hoje é o Monte Avelames. As Casas nas Árvores – as chamadas Snake Houses, que aqui no atelier foram baptizadas – elas acontecem em cima do Monte Avelames. Ou seja, em cima do antigo hotel, que fazia parte integrante da paisagem. O antigo hotel que nós conseguimos retirar porque, de certa forma, tornou-se um edifício autista, relativamente ao parque e a toda a arquitectura que lá estava. Portanto, conseguimos retirar e conseguimos ampliar a mancha verde do parque. Esse edifício acaba por não contar por estar debaixo de terra e tem árvores. Penso que as coisas correram bem. Vamos ver agora estas entidades. Como lhe disse, há alguma mediocridade que vence sempre e que não gosta deste sucesso. Vamos ver o que vai acontecer e ver quais vão ser as cenas dos próximos capítulos ali em Pedras Salgadas. Também, ali ao lado de Pedras Salgadas, reabilitámos o rio Avelames. Ou seja, fizemos uma grande intervenção nas margens do rio Avelames, que passa à frente do parque, em que havia um canal e deixou de o ser. Hoje é um espaço de lazer muito interessante. E também, por via desta mediocridade, que são os presidentes de junta e por aí fora, nós tínhamos feito uma série de diques para conseguirmos reter a água, durante o Verão, para que se pudesse passear de barco ali nesse rio, mas a primeira coisa que o presidente de junta fez no primeiro Inverno foi, em vez de abrir as comportas, deixou-as fechadas, o que deu azo a rebentar com as comportas todas.
SN - Caramba!
LRA - Foi uma tristeza. E depois também, a pedido da câmara, fizemos a reabilitação do parque das Romanas, que era um campo com prova de saltos a cavalo muito famoso. Era tido como um dos melhores campos de salto a cavalo na Europa, mas depois também morreu. Nós reabilitámos esse campo de saltos com as bancadas, criámos um picadeiro coberto e boxes para cavalos. E hoje é uma actividade que tem muito sucesso. Ainda fizemos 40 boxes de cavalos e estão todas cheias com cavalos.
Há aulas de equitação para os miúdos. Há muitas actividades ali à volta, o que também é um orgulho. No fundo, não são as rotundas, nem os passadiços porque isto vai sempre por modas. Primeiro veio a moda das rotundas, depois veio a moda dos pavilhões gimnodesportivos, que podiam ser aproveitados das escolas, mas não o foram. Depois criam-se aberrações enormes porque vemos edifícios com estes temas com ar condicionado sofisticadíssimo, mas as câmaras nem têm dinheiro.
SN - Não têm dinheiro para os pagar.
LRA - Não têm dinheiro para os pagar porque são caros demais. Isso também é uma responsabilidade dos arquitectos, mas infelizmente a prioridade, muitas vezes, desses projectos não são esses temas, são as vaidades que contam. Agora nasceu a moda dos passadiços, que eu acho muito bem. Foi muito interessante a construção dos primeiros Passadiços do Paiva porque criou alguma inovação. Há passadiços em tudo o que é concelho. E agora passamos para a nova moda que vão ser as pontes. Aqui a Câmara de...
SN - De Vila Pouca de Aguiar.
LRA - De Vila Pouca de Aguiar, quanto a mim esteve bem porque reabilitou algo que era a sua vocação. As câmaras têm de ter noção de que elas não são todas iguais. Não se pode plantar morangos em todos os terrenos.
SN - Certo.
LRA - Tem de haver condições para se plantar morangos e há outros terrenos em que é melhor plantar batatas.
SN - No fundo, estamos a terminar como começámos, não é Luís? Falámos novamente da identidade do lugar.
LRA - Exactamente. Trata-se do respeito da vocação dos sítios. Nós temos uma grande preocupação em cada lugar onde intervimos. Tentamos entender os lugares, tendo em conta o alfabeto do lugar. Tentamos trabalhar com esse alfabeto e tentamos inovar, mas sempre dentro desse alfabeto. Nunca vamos buscar novas letras a outros sítios. Vamos usar as letras do sítio para construir o nosso romance, mas sempre aplicando essas regras. Se estamos no Alentejo, estamos com os adobes e com uma série de elementos quer formais, quer de métodos construtivos com os materiais e por aí fora. Com eles, tentamos criar algo que, no fundo, seja diferenciador, mas ao mesmo tempo respeitador do lugar em que está.
Nunca na minha vida eu irei construir no Alentejo com mármore vindo da China. É algo a que eu me recuso. Ou construir com tijolos vindo de Espanha. Não faz sentido. Quer dizer, nós temos chacotas fantásticas.
SN - Nos dias de hoje ainda menos, não é?
LRA - Exactamente. Com estas facilidades que os transportes nos criam. A sustentabilidade tem a ver com isso! Se eu tenho cá, porque é que vou comprar fora? Essa pegada custa muito dinheiro a nós todos. Não tenho esse direito. E que nunca coloquem a nossa criatividade em causa porque, muitas vezes, aquilo a que a nós assistimos — e inclusive arquitectos com muito trabalho neste país — é que as pessoas dirigem-se à biblioteca que lá têm em casa, vêem edifícios e depois copiam-nos integralmente. Fazem uma cópia integral, sem que esse edifício esteja minimamente adaptado ao sítio. Há coisas que são confrangedoras, como aquilo a que nós assistimos hoje nos grandes projectos em Lisboa. Estamos a falar de sustentabilidade e, por exemplo, os grandes projectos em Lisboa que estão a ser licenciados são todos edifícios em vidro. Não faz sentido nenhum. Num desses edifícios, um administrador da EDP dizia-me que, durante a pandemia, o ar condicionado não podia estar ligado por questões de protecção pandémica, portanto não se podia trabalhar dentro do edifício porque, no seu interior, em termos de ambiente, era totalmente insuportável. Não se consegue viver lá dentro sem bom ar condicionado. Isto é tudo muito engraçado, mas no fim do dia as coisas não funcionam. Acho eu que não funcionam. São contradições entre o discurso que é feito e a realidade que é praticada. Isto a mim faz-me a maior das confusões, mas nesses aspectos penso que estou sozinho na Terra. Ou devo estar sozinho na Terra a defender estas questões.
SN - Penso que não está sozinho porque, pelo que vejo no seu portfólio de trabalho, há quem acredite no seu trabalho. Agradecemos também a quem acredita no seu trabalho porque tem feito edifícios como os das Pedras Salgadas, que realmente nos lembram a importância da paisagem. E mostram que a paisagem não é nossa — como dizia, achei muito interessante essa reflexão —, nem de quem é dono do terreno, nem de quem a projecta. A paisagem é de todos, de quem está Aqui e Agora e das pessoas. Para além disso, existe a importância de que vamos deixar um legado para o futuro, por isso agradeço muito esta conversa e as suas partilhas. E já percebi que tínhamos conversador para mais um episódio, Luís.
LRA - No fundo, agora o novo tema do dia é que nós temos de mudar também este paradigma da construção porque temos de sair da construção regada para passar para a construção seca. Os preços de construção estão a atingir valores perfeitamente impossíveis. Também é um dos factores que transforma as rendas muitos elevadas. Os preços da construção estão a atingir números perfeitamente insuportáveis e isso vai-se reflectir nas rendas, como é óbvio. E as pessoas em Portugal não ganham para pagar essas rendas.
SN - Isso não se tem reflectido nos nossos honorários ou nos nossos ordenados, não é?
LRA - Não. Obviamente, isto aqui é uma luta que os portugueses têm de perceber e centrar-se nessa luta. De facto, os patrões têm todo o interesse, contrariamente àquilo que as pessoas imaginam, em duas coisas. Ainda no outro dia ouvi isso com bastante agrado. Primeiro, têm interesse de podermos subir o ordenado mínimo, de repente, para os 1.000 euros ou 1.200 euros por mês, mas, em contrapartida, temos de ter uma lei do trabalho flexível. Ou seja, quem tem trabalho é quem se esforça, quem luta, quem dá o corpo ao manifesto porque aquilo que a lei hoje promove é a dependência do subsídio. Ganha-se mais estando no fundo de desemprego, a fazer uns trabalhos por fora, do que estar empregado a ganhar 500 euros por mês. Isto depois cria este...
SN - Sim. Não compensa ser bom trabalhador quase.
LRA - Não, não compensa. Não há cultura do mérito em Portugal. Quem é bom é, até muitas vezes, afastado, exactamente por estar a criar sombras negativas sobre os outros. Como tal, penso que é o país que temos. Enfim... alegremente, a caminhar para a pobreza e para sermos o país mais pobre da Europa. As pessoas não entendem isso. São as duas faces da medalha. Depois tornamo-nos um país barato, com muita atractividade para o turismo, mas há aqui um balanço, há aqui um equilíbrio que tem de acontecer. Os políticos têm a obrigação de ser capazes de criar que não são fáceis. A política não é para mim. Para mim é mais a arquitectura e mais projecto, mas está muito difícil trabalhar em Portugal porque os próprios arquitectos fazem uma concorrência desleal. As câmaras estão uma completa e total desgraça neste momento. Tudo isto leva a que um projecto que leva três anos numa câmara para ser licenciado...
SN - Sim, é muito tempo.
LRA - Quando nós vamos para França e para Inglaterra os projectos são aprovados, no máximo em três meses, porque há um trabalho muito directo entre os arquitectos das câmaras e os arquitectos projectistas. Eles, rapidamente sentados à mesa, conseguem chegar a soluções viáveis de licenciamento. Aqui isso não acontece. Em Portugal se eu pedir uma reunião na câmara, provavelmente nem sequer tenho resposta. Mas se um promotor pedir uma reunião na câmara, ele automaticamente tem uma data marcada para essa reunião. E, portanto, é aquilo que hoje em dia eu faço. Peço aos meus promotores que marquem uma reunião na câmara para eu conseguir chegar ao arquitecto. De outra forma, não consigo chegar. Isto indicia o quê? Quem tiver dois dedos de testa, imagine o que é que isto quer dizer, não é?
SN - É o sistema que promove a corrupção. Não sei só porque é que não promovemos... Quem está do outro lado devia ficar contente por poder contribuir para que a sua cidade tenha melhores edifícios, melhores construções. Devia ser um orgulho e isso também devia acelerar o processo, não o contrário. Parece que temos orgulho é em atrasar projectos, que eles não avancem. Não sei...
LRA - Não porque, repare numa coisa, a mediocridade tem uma dificuldade enorme em se comprometer. A mediocridade tem uma dificuldade enorme em ouvir uma crítica. A mediocridade tem tudo isso, portanto é preferível (como se diz na gíria da bola) mandar a bola para o pinhal ou para um canto. Eles não sabem o que hão de fazer à bola, quando na verdade é só chutar à baliza. Eles preferem tirar a bola para canto, que é para não terem de se comprometer e com o falhanço de a bola não ter entrado na baliza. É o que temos. Obviamente que eu digo estas coisas, mas eu...
SN - Mas é um optimista, não é Luís?
LRA - Sou completamente. Até por uma razão muito pragmática. Isto que aqui estou a descrever não é transversal às pessoas que trabalham no serviço público. Eu tenho conhecido uma série de técnicos no serviço público notáveis. Às vezes, recebo e-mails, às sete da tarde de um sábado, com o parecer de um arquitecto de uma câmara ou de uma direcção geral. Nós não podemos nunca correr o risco de generalizar estas questões. Estas questões são transversais. Na grande maioria das vezes, é muito difícil, sobretudo quando se trata de câmaras grandes.
Estes presidentes de câmara não conseguiram ainda encontrar formas de resolver os problemas, mas eu penso que são relativamente simples porque se tiverem um gestor de projecto que se aproxime dos projectistas, que dialogue com eles e que negoceie com eles os projectos, penso que é possível ter projectos aprovados com muito maior rapidez. E mais, penso que esta burocracia instalada piora tudo. Cada vez que um projecto recebe um parecer negativo em que os técnicos da câmara nunca estão disponíveis para discutir o projecto, em fase de análise, com os projectistas, ou seja recebe-se um parecer negativo, o projecto volta para o atelier, é dada uma resposta e o processo volta à estaca zero. Depois subir por aquela escadaria de pessoas, que tem de se pronunciar, é um drama absurdo. E penso que ainda não houve... Eu tenho imensas esperanças nesta nova câmara. Estas mudanças são sempre boas para que eles consigam resolver esse problema e para que – pelo menos em relação aos gabinetes que são conhecidos por fazerem boa reabilitação – não tenham também a desconfiança sistemática de tudo aquilo que nós fazemos. Tem de haver garantias e tem de existir aqui alguma confiança entre técnicos. Os tempos não são esses. Os tempos são tempos de vaidade. São tempos de mascarar poderes que não se têm, são tempos de bullying, no sentido em que o mais forte continua a maltratar o mais fraco. Eu tento tratar muito bem quem está abaixo de mim, mas sou muito duro – e tenho recebido algumas críticas – com quem está ao meu nível ou acima de mim porque penso que esses têm responsabilidades. Mas parece que, muitas vezes, voltamos ao tempo da escola em que os meninos mais fortes batem nos meninos mais fracos ou aqueles que parecem mais fracos. Depois é curioso na vida perceber que esses meninos, muitas vezes, são os que mais brilham, intelectualmente, na sociedade. Foram os que mais evoluíram, foram até os que subiram mais alto nas responsabilidades e nas recompensas que a sociedade lhes dá. Enfim... Sara, poderíamos estar aqui horas e horas a fio a falar sobre este tema. Eu também não sei, acho que é muito difícil conseguir dar respostas e encontrar os caminhos para que, de facto, sejamos capazes de resolver todos estes problemas que a nossa sociedade tem. No sentido em que, no fim do dia, consigamos fazer com que a sociedade evolua e que seja capaz de resolver estes problemas todos, nomeadamente aquele que falámos no princípio da nossa conversa, que tem a ver com a habitação para todos, habitação a custos possíveis para quem cá vive. Ainda agora assistimos a um problema que é o concurso para distribuição das casas, que a Câmara de Lisboa tem. É um concurso que tem de ser para todo o país e não para as pessoas que mais necessidades têm em receber casas em Lisboa porque vivem em Lisboa, trabalham em Lisboa e precisam de estar perto para ter uma vida razoável. Há aqui muita questão.
SN - Sim, há muito trabalho a fazer. E é uma das coisas que nos motiva, ao fazermos este podcast. É também para que todos juntos possamos encontrar meios ou, pelo menos, debater as questões e os problemas que nos preocupam e com isso arranjar soluções. Espero que, pelo menos, ajude a valorizar a arquitectura portuguesa.
LRA - Muito bem!
SN - Muito obrigada, Luís, pelo seu contributo.
LRA - Olhe gostei mesmo!
SN - Gostei mesmo muito também!
LRA - Muito obrigado, Sara. Obrigado, obrigado, Sara! Até sempre. Quando precisar de alguma coisa nossa, esteja sempre à vontade. Para nós é muito bom participar nestas iniciativas. Muito obrigado, Sara!
SN - Obrigada Luís!
LRA - Obrigado!
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.